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Por uma morte com menos sofrimento

UTIs modernas são equipadas com os melhores equipamentos que conseguem garantir que o paciente permaneça vivo, mesmo que a respiração seja por ventiladores mecânicos, os rins só funcionem com hemodiálise, a comida chegue por sonda e o paciente permaneça sedado 24 horas por dia para não sentir dor. Se coração e pulmão pararem, médicos e enfermeiros estão a postos para fazer ressuscitação cardiopulmonar.

O paciente não responde mais ao tratamento curativo, os recursos terapêuticos se esgotaram e a doença está simplesmente cumprindo seu ciclo natural. São indivíduos com quadros irreversíveis, na maioria das vezes vítimas de câncer avançado, ou pacientes com sequelas de AVC, cardiopatias graves ou algum tipo de demência como Alzheimer.

Num mundo ideal, eles deveriam ser encaminhados aos cuidados paliativos, que garantiriam mais qualidade de vida. Na prática, permanecem na UTI recebendo tratamentos inúteis e morrem longe do convívio da família. Gastam-se recursos para mantê-lo “vivo”, enquanto outros pacientes que realmente precisariam de uma UTI não conseguem vaga. Isso ocorre por diversos motivos: resistência do especialista em encaminhar o paciente a um médico paliativista, falta de diálogo ou de profissionais capacitados. Outro problema é a falta de leitos disponíveis. Em São Paulo o número não chega a 100 nos hospitais públicos.

Pesquisa realizada pela consultoria Economist Intelligence Unit e publicada em 2010 pela revista inglesa The Economist coloca o Brasil em 38º lugar em um ranking de 40 países quando o assunto é qualidade de morte. O país fica à frente apenas de Uganda e da Índia.

Em entrevista ao portal Vencer o Câncer, a médica geriatra Ana Cláudia Arantes, especialista em cuidados paliativos e draacaque atua no Hospice HC-Jaçanã, fala sobre o papel do médico paliativista.

Vencer o Câncer: Quando os cuidados paliativos são indicados ao paciente? Ele é recomendado somente em casos graves e terminais?

Ana Cláudia Arantes: Esse tipo de tratamento não é só para quem está morrendo, mas maioria dos pacientes chega para a gente muito tarde. Quando o cuidado paliativo começa após o diagnóstico da doença, é possível prevenir os sintomas desagradáveis que ela acarreta, proporcionando melhor qualidade de vida ao paciente e à família.

O propósito do cuidado paliativo é o controle do sofrimento que está vinculado a doença e ao tratamento. Para se ter uma ideia, a probabilidade de o indivíduo com diagnóstico de câncer estar sofrendo é de 100%. Tem a dor física, que pode resultar em falta de ar, fadiga, náuseas, falta de apetite, além de outras dores muito fortes no corpo. E a dor emocional, que gera o medo, a ansiedade, a depressão.

Se olharmos na origem da palavra, paliativo deriva do latim “pallium”, que significa “manto” ou “cobertor”. Na época das Cruzadas, os cavaleiros utilizavam o pallium, que era uma capa muito grossa e forte para se proteger do frio, da chuva, do sol.Portanto, esse é o papel do cuidado paliativo: proteger o paciente do sofrimento que a doença necessariamente vai trazer.

VOC: Chega tarde porque há certa resistência dos médicos em relação aos cuidados paliativos?

Ana Cláudia Arantes: O profissional de saúde é treinado para mostrar o que ele sabe fazer. Entretanto, nem sempre o que ele sabe é o que o paciente necessita. Talvez não seja recomendado porque pode passar a ideia de fracasso, que o tratamento oferecido inicialmente não deu certo. Tem também aquela ideia de “para que investir no paciente se ele vai morrer, mesmo?”. A minha resposta: porque ele está vivo. Mesmo que você tenha convênio, sinto muito, pois o risco de você morrer neste país sem nenhum tipo de tratamento paliativo é alta.

VOC: Mas o SUS e os convênios não oferecem esse tipo de tratamento? [relacionados]

Ana Cláudia Arantes: Em relação aos hospitais privados, muitas vezes não existe uma equipe suficiente para dar conta do problema, que tem o compromisso com a qualidade do atendimento. Ainda assim, alguns hospitais, “mais diferenciados”, por conta das certificações internacionais, acabam oferecendo — na melhor das hipóteses –, um serviço de interconsulta, como se fosse uma consultoria. O médico titular da equipe chama um outro médico especialista em cuidados paliativos para dar opinião a respeito dos cuidados dos pacientes.

Na verdade, para ter acesso a esse tipo de tratamento você tem que passar pelos hospitais públicos. A Santa Casa oferece um serviço para crianças muito bom. O Instituto do Câncer de São Paulo, o Hospital das Clínicas, o hospital do servidor público municipal e estadual, além do Hospice do HC (pronuncia-se “róspice”, é um local que combina a especificidade de um hospital e a hospitalidade de uma casa de repouso), onde eu trabalho, também. Mas as vagas disponíveis nesses locais são poucas.

VOC: Quanto tempo, em média, o paciente chega a ficar sob seus cuidados?

Ana Cláudia Arantes: É uma média de permanência curta, aproximadamente 15 dias. Mas, ao mesmo tempo, há pacientes que chegam para morrer e vivem meses. Eu já tive um paciente que viveu dois anos aqui. Ele volta a andar, a comer, não sente mais dor. Esse tempo que eles ficam conosco é preenchido de vida. Aqui a família pode ficar ao lado, animais são permitidos. Se ele tem condições de ficar em casa, a gente libera. E eu não trabalho sozinha, é um conjunto. Temos um capelão, assistente social, psicóloga, nutricionista, farmacêutico, enfermeira, terapeuta ocupacional, dentista e fisioterapeuta.

Aqui no Hospice são dez vagas, somente. Então, quando o paciente chega, é muito comum a família dizer que ele teve muita sorte. Porque ele sai de uma maca de corredor, numa situação humilhante, e vai para um local tranquilo, onde conseguimos amenizar as dores e ele passa a ter mais dignidade. São cuidados simples, mas com muito esforço humano, que fazem uma enorme diferença.

No hospital ele teria morrido fazendo quimio, transfusão, exames invasivos. Sofrimento mata. Por isso, eu espero estar viva no dia em que for antiético você não oferecer cuidado paliativo ao paciente com câncer já no diagnóstico.

VOC: E o sistema homecare (assistência domiciliar) que alguns convênios oferecem?

Ana Cláudia Arantes: Outra grande cilada. Eles dizem que fazem cuidados paliativos, mas quase nenhum profissional sabe pegar acesso subcutâneo, que é aquele que não precisa ficar furando o paciente para achar a veia. Os profissionais não sabem prescrever morfina. A gente pede a caixinha de medicamento para conforto e eles dizem: “ah, esse remédio nós não temos”, ou ”com esse medicamento nós não trabalhamos”. Isso não é cuidado paliativo. O melhor lugar para morrer é onde você está seguro. E nem sempre é em casa.

Repórter: Como a senhora fala de morte com seus pacientes?

Ana Cláudia Arantes: A gente fala a verdade e ninguém morre por isso. Se a pessoa está muito doente e eu digo que não é nada sério, ela sabe que eu estou mentindo, porque a doença está nela. Se a gente não fala nada, você nega ao paciente o direito a opinar sobre algumas das escolhas mais importantes da vida dele.

Não é que a gente declama o resultado de uma biópsia ou o prontuário médico dele, mas tem que ter a sensibilidade de comunicar da melhor forma e respeitar o limite. Até onde ele quiser saber.

Às vezes, a família diz: ”não fala nada, ele não vai aguentar”. Mas, na maioria das vezes que eu tive essas conversas com os pacientes, eu só tive que confirmar uma coisa que ele já sabia. Eu não lembro de ter contado nenhuma novidade, de assustá-lo. Ele sabe que não é só uma bolinha que ele tem no pescoço. Talvez é a família que não está preparada para esse momento, não conseguiu ainda elaborar a dor da perda. Esse processo de morrer é uma arte do cuidado paliativo.

VOC: E a família, como fica?

Ana Cláudia Arantes: É preciso cuidar da família antes desse processo todo acontecer, para que seja possível elaborar o luto da melhor maneira possível. São eles que ficam e são os que mais sofrem, também.

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